Chutando uma bola ou fazendo um amigo, criança quer escola, criança quer abrigo.
Na hora do cansaço ou na hora da preguiça, criança quer abraço, criança quer justiça.
Em qualquer lugar criança quer o quê? criança quer sonhar, criança quer viver.
Agente quer, agente quer, agente quer ser feliz, CRIANÇA É VIDA.
— Toquinho, cantor e compositor

O PRÍNCIPE COM ORELHAS DE BURRO

Certo rei vivendo muito desgostoso por não ter filhos embora fosse casado há vários anos, pediu ao homem mais velho do reino:

Tu, que, por muito teres vivido, decerto muito sabes, dize-me o que devo fazer, para que Nosso Senhor se compadeça de mim.

Isso, majestade, é da competência das três irmãs, as fadas Bonita, Sabichona e Sensata, que moram na floresta. Mandai, portanto, chamá-las – respondeu-lhe ele.

E as três  irmãs vieram e afirmaram ao rei:
Terás o filho que deseja, se consentires que assistamos ao seu batizado.

O rei acedeu imediatamente e, por isso, tempo decorrido e com regozijo de todos, nascia o príncipe. No dia do batizado, conforme a combinação feita, apresentaram-se as três fadas.

Primeiro a fada Bonita tomou o principezinho nos braços e tocando-o com a sua varinha, determinou, em voz tão baixa que ninguém ouviu senão as irmãs.
Eu te fado para que sejas o príncipe mais lindo do mundo.

Depois, a fada Sabichona, aproximou-se e disse de igual forma.
Eu te fado, para que sejas o príncipe mais sábio do mundo.

E, por fim, coube a vez à fada Sensata, que, não obstante seguir também os modos das outras, se exprimiu de maneira um tanto quanto diferente:
Ah, com que então só bonitezas e sabedorias? Para que tenhamos, pois asneira no caso, eu te fado, ó príncipe, a fim de que te nasçam umas orelhas de burro.

Foram-se embora as fadas e, doravante, o príncipe deu-se a crescer no corpo, na boniteza e na sabedoria, que era um louvar a Deus. Mas, à medida que crescia, cresciam também as suas orelhas. E o rei e a rainha, envergonhados com o fato, mandaram lhe fazer uma touca especial que lhe as ocultasse de todos os olhares, e ordenaram ainda que jamais a tirasse.

Escondidas as orelhas, os cortesãos, não as vendo, achavam o príncipe um portento de formosura e inteligência e, por isso, amiúdo lhe diziam:
Tão belo e sábio como vós, não conhecemos outro rapaz.

De tanto escutar isso, o príncipe tornou-se um vaidoso, pois era tão ignorante da sua deformidade como os cortesãos e, em breve, passou a achar defeitos em todos quantos o rodeavam e apontá-los.

Entretanto, o príncipe de tanto crescer, tornou-se um rapagão, nascendo-lhe a barba. O rei ao verificá-lo, ordenou, pois, que o seu barbeiro lha fizesse. E este, tendo para isso de tirar a toca do príncipe, viu as orelhas e gritou horrorizado:
Apre!, que orelhas assim, só as do burro do meu compadre!

Ergueu-se de salto o príncipe da cadeira, disposto a castigar o insolente; mas de súbito, viu refletido no espelho à sua frente a sua cara e as orelhas.

E logo, perante a realidade destas, se pôs a chorar e a soluçar, que era uma dor de alma! Atraído pelo barbeiro, o rei então apareceu. E, vendo o que sucedera disse ao barbeiro: Ou guarda segredo acerca de tudo ou mando-te enforcar.

Feita a barba, o príncipe pôs outra vez o barrete e o barbeiro foi à sua vida. De futuro, porém, todos estranharam os dois. O príncipe mostrava-se permanentemente triste e, quanto ao barbeiro que outrora falava pelos cotovelos, era agora quase mudo. Não que ele tinha medo de dar à língua ou não se lembrasse de que, pela boca, morre o peixe.

Mas, ai! O segredo pesava-lhe como chumbo. E, resolvendo portanto, confessar-se, em busca de alívio, disse ao padre: Se não conto a todos que o príncipe tem orelhas de burro, rebento!

Olha, meu filho, vai a ao monte, faz um buraco no chão e diz para dentro dele o segredo, tantas vezes quantas as necessárias para que fiques aliviado do seu peso. Depois, tapa-o com terra. O barbeiro seguiu o conselho, e na verdade, regresso à casa já tão falador como antes.

Mas, no sítio onde fora enterrado o segredo, nasceu tempo após um canavial. Ora, certo pastor cortou nele uma cana, fazendo desta uma flauta. E, quando a levou aos beiços, a mesma cantou:

♫ O príncipe tem orelhas de burro, o príncipe tem orelhas de burro...

Espalhou-se a notícia do prodígio e, chegando ela aos ouvidos do rei, de pronto o mesmo mandou vir à sua presença o pastor, que, diante de toda a corte, se pôs a tocar a flauta e esta a dizer:

♫ O príncipe tem orelhas de burro, o príncipe tem orelhas de burro...

Porque só havia no reino um príncipe, todos os cortesãos olharam imediatamente para ele, cogitando: “Se calhar, a toca é para escondê-las...” 

E o príncipe, adivinhando os seus pensamento, ficou vermelho como uma cereja e com as lágrimas nos olhos, exclamou:

Sim, eu sou, como ides verificar, o príncipe com orelhas de burro. Perdoai-me o mal que vos fiz, quando outrora caçoava dos vossos defeitos, sem cuidar que podia ter outros piores...

E, com tais palavras, o príncipe levou a mão à toca e a arrancou. Mas, nisto surgiu a fada sensata que atalhando-lhe o gesto disse:
 
Ah, que se não sou eu, tinhas permanecido vaidosão! Mas, como estás curado do defeito, não há motivo para continuares orelhudo. Tira, portanto, a toca.

E o príncipe assim fez, e as suas orelhas apareceram... rosadas e pequeninas. Ficaram muito contentes o rei, a rainha e o príncipe e, de futuro, o último, quando lhe chamava a atenção para as pernas tortas destes ou para a estupidez daquele, respondia: Estás a precisar de umas orelhas de burro, amigo!

Fonte:
Texto adaptado do livro “Príncipe com Orelhas de Burro” de Jose Régio
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